Metá Metá de Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França chega com pé no peito da cena musical brasileira



Por Ana Mesquita |

Passo por fases obsessivas com alguns discos. Escuto até decorar as letras e saber de cor o tempo de silêncio entre as músicas. A obsessão vai mais além: dou play ad nauseam e não consigo ouvir outro som além do disco, ou é ele o é o silêncio. Talvez seja uma necessidade de fixação, em meus sentidos e mente, do que realmente vale apena nessa vida, já que a fugacidade é regra no mundo digital.

Mesmo assim os silêncios dos meus dias estão sendo preenchidos com a voz de Juçara Marçal, o sax e flauta de Thiago França e o violão de Kiko Dinucci, pois as músicas do disco Metá Metá, recém lançado pelos selos Cirus/Desmonta, não saem da minha cabeça. O princípio de coletividade perpassa todos os aspectos desse trabalho, começando com o fato de não ser um álbum solo de um deles, o álbum é dos três. Essa idéia se reafirma no próprio nome Metá Metá, que em ioruba (língua africana falada até hoje em alguns países do continente, e que também é utilizado em ritos religiosos brasileiros e cubanos) é um termo que quer dizer três ao mesmo tempo.

Outra coisa bacanuda do álbum é a forma como ele está sendo distribuído. Por enquanto só pela internet através de download. Além do site você pode ouvir o disco também pelo aplicativo Bagagem, enquanto vê vídeos maravilhosos, e se tiver tempo e vontade, dar uma olhada no encarte. O aplicativo Bagagem prendeu minha atenção desde o início, porque ele resolveu uma série de questões do usuário que baixa música na internet. Tem os discos lá, disponíveis para download e audição, tem vídeos exclusivos e inéditos para cada uma das músicas, tem a ficha técnica e encarte disponível – coisa rara – e pra matar a pau, tem um chat/rede social ali. Ah! E rola umas notícias rotativas também, além de compartilhamento com Twitter e Facebook.

Pode parecer que é muita informação junta, mas não é, pois o layout da parada é classudo e não deixa o uso cansativo. Minha brincadeira preferida agora é ALT TAB pra ver o vídeo que tá rolando com a música que tô ouvindo, por enquanto só o Metá Metá, pois como já disse, não consigo ouvir outra coisa.

Totalmente brasileiro, o aplicativo foi idealizado pelo pessoal do Projeto Axial, grupo paulistano que organizou também o Coletivo Bagagem, composto de pessoas envolvidas com o mercado fonográfico. Com o lema “Compartilhar Cultura não é Pirataria” o programa sustenta a bandeira de Creative Commons, garantido assim o livre compartilhamento de seus conteúdos.

Pense nuns cabras generoso!

A sintonia dos três é infinitamente bela, Juçara tem voz doce e não se deixa enganar pelo falsete, voz firme, direta, que vem das entranhas, mas que passa pelo coração antes de sair de sua boca. A base do disco são os acordes do violão de Kiko fortemente influenciado pelo afro samba e afrobeat, mas com pegada própria, contemporânea. E o sax de Thiago tem um timbre que me emociona, me pega e me leva pra lembranças sonoras deliciosas.

Thiago França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci

"Vale do Jucá" abre o disco lindamente, toda delicada, mas com uma letra arrebatadora, falando do antigo e do atual, com um solo de sax tão triste e angustiante e uma marcação quase marcial de tempo. Música de Siba Veloso. Aliás, a escolha dos compositores desse disco é um capítulo a parte. Só gente talentosa, independentemente de valoração da fama. Percebe-se o cuidado com a pesquisa das canções para a criação de um álbum coeso, que expresse uma idéia única, dentro da diversidade de texturas rítmicas e harmônicas.

"Umbigada" de Lincoln Antônio te tira o nó da garganta deixado com a primeira música e te leva pra brincadeira da dança folclórica, a flauta transversal te conduz para esse caminho. "Papel Sulfite" de Jonathan Silva, é o alívio do coração, um pedido de perdão e de abertura ao novo em uma relação. É a fé no amor apesar do cotidiano que mata.

Quando começou "Trovoa" achei que seria simplesmente um poema recitado no meio do disco, mas Juçara vai dando ritmo ao canto e a forma inconfundível do canto falado – ou fala cantada wherever – da música paulistana do fim dos anos 70 e início dos 80 aparece certeira. Aqui a poesia se sobrepõe aos instrumentos, que fazem unicamente uma cama para que Juçara cante São Paulo da Santa Cecília até a Vila Ipojuca, jurando que vai virar mendingo caso seja abandonada. Maurício Pereira tem seu talento relembrando.

Choro toda vez que escuto "Samuel", parceria com Rodrigo Campos – que toca cavaquinho nessa faixa – a música trata de um garoto que vai aprontar na região da Paulista/Augusta. Um Afro Samba clássico lindo de morrer e emocionante, e que com uma par de versos diz mais do que muito livro teórico sobre o processo de urbanização de São Paulo e de como o centro é um local de exclusão. Expulsamos os pobres pras longínquas periferias e fazemos de conta que o problema não é nosso. Cidade partida. "Vias de Fato", composição de Edu Batata, Douglas Germano e Kiko Dinucci também é um afro samba, da solidão. “Sigo meu caminhar, nunca amanheço o mesmo”.

Agora tu vira o disco porque vai começar o lado B

E vai andentrar o mundo dos orixás do candomblé. "Oronian" e "Oba Iná" – a primeira parceria de Douglas Germano e Kiko Dinucci, e a segunda somente de Douglas – são daqueles tipos de música que dá vontade de sair dançando e cantando junto, porque você tem certeza algo muito bom vai acontecer com sua alma se fizer isso. Destaque para o sax de Thiago em "Obá Iná", quebradeira pura, solo inspirador.

"Obatalá" baixa a pulsação com uma melodia encantadora. É o melhor dos vídeos do Bagagem, de uma poesia visual e sonora rara. Composição solo de Kiko, a única somente dele.

O disco fecha com um ponto de Oxum. Uma amiga, filha de Oxum, usava somente branco toda sexta-feira, mas sempre com algum adereço dourado, porque sua mãezinha gosta muito. “Sai queimando bicho” denúncia a gravação ao vivo em estúdio. Na verdade nunca imaginei que tivesse sido gravado de outra forma esse disco, com todo o envolvimento e dedicação ao conjunto da obra despendido pelos três para fazer o melhor álbum brasileiro que saiu até agora.

Ainda estamos em maio, mas acredito que Metá Metá certamente entrará nas listas de melhores do ano. Certa vez Romulo Fróes publicou em sua página no Facebook uma matéria sobre os cantores do país. Na matéria o cara dizia que esse ano seria o ano dos garotos. Concordo com ele, 2010 foi o ano das garotas e 2011 será dos garotos, não se esqueçam que Pélico, Rafael Castro e o próprio Romulo Fróes, só pra falar desses 3 que me vem a mente prontamente, estarão lançando disco neste 2011. Sim, o ano é dos garotos.

Metá Metá - Oranian


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Ana Mesquita é colaboradora do Pastilhas Coloridas e jornalista freelancer amante de cinema. Twitter: @anamesquitafoto
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