Roendo o próprio osso - Bate-papo furado com a Pastor Rottweiler


Por Elsa Villon |

O texto a seguir contém vários lapsos temporais e o volume de informações pode parecer desconexo aos leitores de primeira viagem. Recomendo uma sessão de “De Volta para o Futuro” e alguns fóruns temáticos sobre o capacitador de fluxo e teoria das cordas para pleno aproveitamento.

Era maio de 2011, um frio de cortar até bochechas do Fofão e surgiu o convite para ver um ensaio da Pastor Rottweiler. Localizado em Santo André, o ponto de encontro era a residência de Fabiano Harada, baterista da banda, gestor ambiental e futuro embaixador da ONU por honoris causa. Contrariando clichês e por conta da baixa temperatura, o som rolaria na dispensa da casa e não na garagem.

Com minha Sony Alpha recém-adquirida e uma vontade inenarrável de fotografar, acompanhei a experiência sonora de perto. As primeiras fotos não fazem jus ao som, mas só se aprende a fotografar fotografando. E só se aprende a tocar bem tocando muito. E eles tocam.

Vamos à escalação: Bruno Ribeiro e Bruno Vasco (ou só Vasco) não apenas compartilham do nome, mas também do instrumento: ambos na guitarra, sendo que o primeiro também trabalha as outras cordas - as vocais. Caio Luiz segue com vocal e gaita, seguido de Fabiano Harada na bateria e o polivalente Paulo Akio no baixo - e em todo e qualquer objeto que possa produzir música. Eis a escalação da banda andreense Pastor Rottweiler.

Na época, o projeto Pastor começava a ganhar forma e elas vinham travestidas de ondas sonoras com alto potencial em decibéis. Entre frascos de desinfetante, prateleiras de ferro, baldes e outros tipos de coisa, um baixista, um guitarrista, um baterista e um vocalista se apertavam para tocar rock. Enquanto isso, do lado de fora, distante da luz amarela fornecida pela solitária lâmpada incandescente dentro da dispensa, eu subia em baldes de massa corrida sem enxergar um palmo à frente do nariz.

Só havia um espaço viável para fotografar: a fresta da janela. E foi assim que eu cliquei os então quatro rapazes (Bruno Ribeiro ainda estava em solo portenho na época) e pude ouvir o barulho feito no ensaio. Barulho sim, porém ritmado. Entre acertos, apertos e afinamentos, nascia o que viria a ser “Manhã do Caolho”, primeiro álbum do grupo. Lapso de tempo.

Fim do lapso: o ano era 2014, abril para ser mais precisa. Dessa vez na casa de Akio, o encontro tinha uma finalidade específica: entrevistá-los sobre o recém-lançado disco. Em uma das suas empreitadas sociais, Harada infelizmente estava desativando algum reator nuclear em um país da extinta União Soviética e não pôde participar da conversa. Mas foi muito representado pelos parceiros de banda.

A ideia geral: falar do nascimento da banda, das influências seguidas e de como tudo isso virou um disco - e mais, como virou uma banda. A realidade: entre shows, ensaios, turnês e experimentações, houve um intervalo de dois anos. Lapso de tempo.

Fim do lapso de tempo. O ano é 2016 e a banda já acumula dois discos, muitas participações e um fã clube oficial em Salesópolis, um dos primeiros palcos em que tocaram (fora da dispensa em Santo André, vale enfatizar). Sigamos por partes: como tudo começou.

Apresentação do segundo disco, no 74 Club, o estúdio mais assombrado do ABC

Prelúdio

O ano era 2009 e o então formado jornalista Caio ingressara no ABCD Maior. Paralelamente ao ofício de Clark Kent, pairava o desejo de criar uma banda de rock clássico, punk rock tradicional do ABC, mas com toques de blues, onde pudesse tocar gaita e fazer um som cru em essência, mas trabalhado de maneira autêntica.

Foi quando se uniu a Renan, que também trabalhava no jornal e tocava guitarra. Juntamente a Akio e Harada, iniciaram os trabalhos e nascia, assim, o embrião do cachorro musicado. Enquanto isso, Bruno Ribeiro estava em viagem, tocando tangos na Argentina desde 2008.

Toquinho disse certa vez, quando questionado sobre as parcerias com Vinícius de Morais: “Era como um casamento sem sexo”. Uma banda segue a mesma premissa (ao menos, ao que parece), e algumas funcionam, outras nem tanto. E há as que se separam (vide os Beatles). Não foi diferente quando Caio e Renan encerraram a parceria musical para que o grupo tomasse outros rumos.

Curioso e melódio, Akio tocava as seis cordas da guitarra como se fossem um baixo e, logo, passou a tocá-lo mesmo, com a chegada de Vasco à menina guitarra, antes empunhada por Renan. Foi assim que os cinco atingiram a sequência de Fibonacci das formações clássicas de conjuntos musicais.

Indo na contramão de covers e versões, o quinteto tem a premissa de tocar as coisas que vivem, com o conceito de um trovador. Nas letras, escritas pelo vocalista, há uma parábola, uma mensagem a ser transmitida.

Dentre as inspirações, estão Cream, ZZ Top, Creedence Clearwater Revival e Allman Brothers, para citar alguns. Em contrapartida, os garotos do ABC não negam as origens: Kubata, Sentimento Carpete, As Radioativas, Projetonave e Giallos (em breve por aqui de volta e outra vez). O projeto “Cão Faminto”, que reuniu seis bandas, foi uma das forças motrizes inspiradoras da banda.

No portfólio, já estavam apresentações no Café Aurora, Central, Tupinikim, em Paranapiacaba, a já citada Salesópolis e o Festival de Bandas da UFABC (Universidade Federal do ABC). Isso tudo ainda em 2014, ano de lançamento do primeiro álbum, “Manhã do Caolho”.

Manhã do Caolho

Se as músicas todas têm ar de parábola, então o disco deveria fechar uma narrativa. Foi assim que nasceu o primeiro trabalho, em 2014. Dividido em sete canções, contam a história de um homem que fica cego de paixão - literalmente.

Draco abre a narrativa, com som quase saído de uma ducha no banho - em parte pela qualidade da gravação do vocal - de um homem amargo. A gaita pontua a quase revolta com a dor do amor (amor?) não correspondido. Tudo pontuado pela guitarra que quase chora em longos solos. Bom para ouvir entre goladas de conhaque.

Xamã da Luxúria parece saída dos anos 1980 e quem ouve já imagina o quinteto com mullets, calças jeans coladas e aquelas bandas horrorosas que poderiam se extinguir da face terrestre. Parece um pouco com Steppenwolf? Parece. É gostosinha para a pós-cópula e um maço inteiro de cigarros? Sim.

A música homônima ao álbum traz um quê do brega de Cauby Peixoto com Luiz Caldas e Agnaldo Timóteo, com toques de sofisticação provenientes do órgão. Aquele ar de melancolia, um zeitgeist que todo mundo com quase 30 ou mais já passou. Novamente, boa entre goles de destilado daquele que te bodeia o resto do dia seguinte.

“Toda garrafa contém uma doença escrita no rótulo” soa meio pessimista, além de generalista e óbvio em Abstinência Zero, é verdade. Mas a verdade, mesmo a mais óbvia, precisa ser dita. No caso, tocada, com estilo bem similar a um Eric Clapton em “One More Car, One More Ridder”, para botar uns panos quentes nas críticas que abrem o parágrafo.

O fator mulher demônio se faz presente em Diana Diaba - Partes I e II, separadas por Bradoque. As gêmeas sonoras diferem e muito em forma e estilo. Na Parte I, palmas, assovios e “humhum” antes do vocal coletivo. Quase indígenas, aqueles cânticos que você imagina cantarolados por apaches em ritos sagrados ao redor da fogueira, amaldiçoando uma bruxa sem vergonha porque ela não deu trela para os seus papos.

Quem buscou aquele formato rock que ganhou fama nos anos 2000 com Strokes e Queens of the Stone Age pode pular direto para Bradoque. As frases de efeito exaltam “os tóxico”s (favor, ler tó-chicos), a combustão espontânea e coisas que a gente já ouviu por ai, talvez não dessa forma. O toque de Cláudio Cox com o discurso narrado e distorcido é a pitada de ABC faltante ao som que poderia ter sido feito em alguma garagem em Seatle.

A Parte II de Diana Diaba tem pegada forte, também com maldições à pobre mulher cujo nome é uma referência à deusa da caça, e que, aqui, ganhou chifres e conjurações, no maior estilo Sagrada Maldita que quadrinistas e músicos adoram enaltecer. Na vida real, quando aparece uma diaba assim, eles bebem. Aqui, virou a faixa de encerramento - e fez bem. Aposto uma paçoca como o refrão “Cigana Macabra/ Seu nome é Diana Diaba” vai chicletar seus miolos por uns bons dias. Missão cumprida, rapazes.

Harada cede a banqueta e as baquetas Álvaro Burns, de A hora do Cafezinho
O Pária, O Condenado e O Cachorro Molhado

Um intervalo de dois anos desde a manhã do caolhão nos leva ao segundo disco do Pastor. Musa de artistas variados, do rock e fora dele, a estrada (vide Sérgio Reis e O menino da porteira) ganha roupagem de blues, com toques cinematográficos dos filmes de faroeste.

Não se espante se, ao ouvir o disco, sua mente remeta aos bangue-bangues trilhados por Ennio Morricone , com direito a batalhas de pistolas num cenário de duelos separado por um feno rolante. O compositor italiano é também uma das homenagens nítidas em “O Pária, O Condenado e O Cachorro Molhado”.

Outras vertentes do rock também dão o tom, com ares caipiras em Kid Milho. Abrindo a sequência com gaita venenosa, é uma ode ao country rock regada a uísque do cereal que a batiza.

Com direito a coral em outras faixas, o folk e o bom e velho punk também dão o tom, principalmente na faixa Roendo o Próprio Osso. A mistura também ganha experimentações sonoras, e versões só tocadas, como Dante, caem como uma luva aos entusiastas da banda que almejam trilhar suas obras audiovisuais.

Caubói da Cidade (Interlúdio) é quase uma composição de Yann Tiersen parece ter saído de uma caixinha de músicas guardada há tempos numa gaveta, herdada da bisavó falecida.

Para encerrar, o Boogie da Caveira fecha a parábola quase quentin tarantiniana em forma de disco. O violão também trabalha forte e, conciliado com o órgão, dá aquela pegada de cowboyzão mesmo. A capa, feita pelo artista Caramurú Baumgartne, surpreende pela quantidade enérgica de cores vivas, ideia oposta ao cenário imaginário de desertos amarelados aos quais somos remetidos ao longo das nove faixas.

Na entrevista, eles destacaram que todos os integrantes trabalham em todas as músicas. A retórica se faz nítida, principalmente nesse segundo disco. Pesado, constante e preenchido, “O Pária, O Condenado e O Cachorro molhado” definitivamente tira o ar debutante de “Manhã do Caolho” em grande estilo. Disso e do termo “banda de dispensa”.

Banda altamente sinestésica - luz + teleobjetiva lenta = foto com blur

Abaixo, o pingue-pongue com a banda:

-Internet
Vou voando
Sem ter pista para pousar
(Papa Léguas - ainda não lançada)

- ABC
Estou cansado de ir para capital
(São Bernô City - ainda não lançada)


- Autonomia
Não sabe se hoje vai comer



- Inspiração
Dichavo um cigarro de puro delírio urbano




- Rock
Bradoque




- Cumplicidade
E só a sarna
É a minha companheira




- Expressão
Fiz o sinal da cruz
Só agora entendo o que é blues




- 2016
Todos vão saber
Que jamais pus o pé no freio




Ouça tudo:



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Documentário Resgates ganha exibição no Sesc Ipiranga


Com direção de Denise Szabo e produção de Elsa Villon e Felipe Ferreira, o projeto independente traça um paralelo entre a infância de juventude desses avós, que cresceram em quintais de piso de caquinhos, lajotas avermelhadas, jardins floridos e portas da sala que davam direto para a rua. Entre cartas amareladas, fotos em preto e branco e olhares de nostalgia, passado e presente constroem 50 minutos de história até os dias de hoje contadas por quem a viveu.

Tendo os bairros do Ipiranga, Sacomã e Heliópolis como cenário, o filme aborda as transformações dos últimos 60 anos na cidade de São Paulo. Realizado com apoio do Programa Vai da Prefeitura Municipal de S. Paulo, o projeto independente surgiu graças às ricas histórias das avós de Denise, moradoras do ABC Paulista, que contavam como eram as vilas de São Caetano do Sul ao se mudarem para a cidade. Migrantes e imigrantes buscaram oportunidades de emprego nas fábricas da região, com a promessa de uma vida melhor. O filme  foi adaptado aos bairros da região sul da cidade de São Paulo e expõe o resgate histórico contado por quem vivenciou todas as transformações.

Lançado em dezembro de 2014,  a obra reúne não somente cenas cotidianas contemporâneas, mas também material do acervo da Cinemateca Brasileira e outras instituições culturais de São Paulo, assim como documentos e registros dos próprios entrevistados.

Por meio de parcerias com espaços públicos e o apoio do estúdio E29, também do Heliópolis, o documentário “Resgates” promove  sua primeira exibição aberta ao público em 2016. O encontro ocorre no dia 19 (terça-feira), às 14h30, no Sesc Ipiranga, com entrada gratuita.

Para mais informações, acesse a página do documentário no Facebook.

Serviço:
Sinopse: Resgates é um documentário que conta a história dos primeiros moradores dos bairros Ipiranga, Sacomã e Heliópolis. Com histórias da infância e juventude desses avôs e avós, o documentário traça o fio narrativo entrelaçando memórias e registros históricos.
Duração: 52 min Após a exibição, os idealizadores também participam de bate-papo no local

Exibição:
Dia 19 de janeiro, às 14h30
Sesc Ipiranga Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga - São Paulo
Obs: retirar os ingressos na bilheteria com uma hora de antecedência
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