São Luís e a atoíce ludovicense

Esquentando o couro do tambor / Foto: Ana Mesquita
Por Ana Mesquita | 

“Aqui na verdade é centro-norte, e não nordeste”

“Nunca conheci um estado no Brasil com uma diversidade tão grande de manifestações culturais e artísticas, aqui é único”.

Demorou um pouco pra eu subjetivar São Luís. Saca aquela frase da clássica música do Caetano, Sampa? “É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Pois bem, foi mais ou menos nessa pegada que cheguei olhando São Luís.

Cadê o verde da mata atlântica e do mar? Ah tá estamos numa ilha...mas é no delta de dois rios? É isso mesmo? Tem duas baías aqui? Praquê essa ponte se não tem água? (e depois passando a noite pela mesma ponte) Ahhh tem água agora...

- Então dona Ana, tá chovendo porque tá no inverno agora.

- Não Bia, como assim? É verão no Brasil inteiro!

- ... (cara de descrédito da Bia olhando pra mim. Deveria estar pensando: - o que essa paulista tá falando, meu Deus!).

Aqui é tambor de mina e crioula (e mais outros que não saberia dizer quais são). Aqui tem vodun, tambor de mina e nagô, dos escravos vindos de Benin, Togo e Nigéria – países da parte ocidental da África. Aqui tem bumba meu boi, boi da maioba, boi do maracanã, boi de madre deus. Aqui é um feudo da família Sarney, onde quase dá pra tocar com as mãos a exploração contra o povo. Tem muita pobreza, o centro histórico está devastado e literalmente caindo. É o estado brasileiro com a pior rede de saneamento básico.

Então tudo parece que se desloca de minhas certezas e visões de mundo. E o único caminho a seguir é deslocar minha ótica, mais uma vez (já que estava vindo de uma semana incrível de Salvador descrita aqui, onde tive que descolar também o olhar). Só assim pra aproveitar cada segundo precioso na ilha. Ilha do reggae. São Luís é conhecida como a Jamaica brasileira. Os bares de radiolas (os paredões de som, o sound system jamaicano) já dominaram a cena noturna da cidade, no entanto no inicio do milênio o boom de reggae no país fez com que essas casas tradicionais e mais roots se transformassem em baladas pra turistas e pra elite, descaracterizando por completo a cultura regueira na cidade. Mesmo com todo esse refluxo, o Porto da Gabi surgiu com uma proposta diferenciada.

Foto do site reggaetotal.com
Toda sexta feira acontece a noite do vinil, em que só rolam as "pedras" do reggae, na maior parte vindas das bolachinhas (compactos). Público com pinta de local, chão de areia, cerveja de garrafa barata, brisa vindo do mar. Depois de 15 minutos que entrei no lugar já me senti em casa, muito a vontade com tudo, menos com a dança. Não sei dançar reggae agarradinho, em dupla. Em São Paulo acompanhamos o som da guitarra, por isso dançamos “pulando” o reggae, em São Luis o pessoal faz como na Jamaica, dança seguindo as linhas de baixo, mais lentas e envolventes. Tentaram me ensinar, mas precisaria de pelo menos mais uns meses de intensivão pra dançar com outra pessoa.

Shows foi o que não faltaram em minha passagem pela ilha. A cena independente bomba, com muitos tropeços e dificuldades, e até mesmo com certo amadorismo, afinal incentivo estatal por parte do governo é nulo, não existem leis de incentivo estaduais e nem municipal, então que temos são pessoas tocando a cena com muita paixão.

O Laborarte é um espaço que existe há pelo menos uns 40 anos, exclusivamente dedicado as expressões artísticas populares maranhenses. Um casario antigo no centro da cidade abriga um dos lugares mais charmoso e enérgico por onde passei. Lá pude ver o show do Samba da Fonte, grupo de samba, digamos assim, clássico, que toca todas as sextas feiras na Fonte do Ribeirão – daí o nome do grupo. Essa Fonte do Ribeirão tem uma história bacana, dizem que é lá onde está a cabeça da serpente gigante que dorme no subsolo da ilha. A lenda conta que a serpente encantada está adormecida, e que está crescendo lentamente. No dia em que a cabeça encontrar o rabo, a serpente despertará e destruirá a cidade, afundando a ilha no oceano. Sim meus amigos, São Luís e quase uma história de realismo fantástico de Gabriel Garcia Marques, e é isso que dá liga à cidade.

Pude ver o show de Rosa Reis tocando caixa do divino e dividindo o palco com sua filha, que canta tão bem quanto ela. Pra finalizar a noite, tambor de crioula. Aqui fico sem palavras, esse tipo de experiência mexe com o indizível. Por isso gravei um trechinho pra vocês terem uma idéia:



Também fui ao show das Afrodites, grupo feminino percussivo que mistura canto e ritmos brasileiros. Foi Cris Campos – que também participa do Coletivo Gororoba, outra banda que vale muito a pena conferir o som – que me contou um pouco mais sobre essa riqueza de cultura negra maranhense. As Afrôs são super talentosas, e cada uma das integrantes é figura ativa na cena independente. O show delas é cheio de energia, elas se revezam tocando diversos instrumentos, entre cordas e percussões. O áudio não está muito bom, mas dá um confere aí:



No dia do show das Afrôs conheci duas figuras da cena: Luciana Simões e Ale Muniz, que forma a dupla Criolina. Aqui em São Paulo acontece uma festa com o mesmo nome, que não te nada a ver com eles. Essa dupla faz música brasileira da melhor qualidade, com influência forte do que é produzido no norte do país. Músicos competentes, profissionais, que inclusive ganharam o prêmio de melhor álbum de 2011 – pelo disco Cine Tropical – do Prêmio da Música Brasileira.

Ensaio das Afrodites / Foto: Ana Mesquita 
O Criolina sacou que pra movimentar a cena na cidade, eles teriam que fazer um trampo realmente independente, daí surgiu a idéia do Festival BR 135, uma alusão à estrada que chega até a ilha, na verdade, o único caminho de chegada e partida de São Luís, inclusive de avião, pois o aeroporto fica ao lado do quilometro zero da rodovia, e todas as rotas passam por cima da estrada.

Tive a sorte e o prazer de participar da primeira edição do Festival. Três bandas tocaram no dia: Stalingrado, Nova Bossa e Pé de Ginja. Stalingrado vai na linha mais do rock clássico. Nova Bossa e Pé de Ginja têm estilos parecidos, ambas bebem na mesma fonte: Los Hermanos. É incrível a influência dos cariocas no Brasil inteiro – fiquei sabendo que um show que farão em Salvador esgotou em poucas horas.

Só que estamos em São Luís, Belém é ali do lado, e é quase inevitável não misturar as sonoridades. Das duas eu destacaria a Pé de Ginja, músicos mais competentes e focados, com maior presença de palco, e hits que disputariam facilmente as atenções das mocinhas de camisa xadrez que freqüentam os shows do Apanhador Só. A gravação que está na página deles do Facebook não é boa, mas garanto a vocês que o show deles é bom a beça. Segue um vídeo, mas já aviso, o áudio não está bom:


Outra casa que tem segurado a bronca da cena independente por lá e o Odeon. Casario antigo no centro da cidade, decoração bacanuda, a casa está preparada para receber shows, exposições e até mesmo pequenas montagens teatrais. Lá conheci a simpática e curiosa Juliana Guterres, que me contou que está abrindo uma produtora com outras duas garotas, voltada aos eventos mais alternativos da cidade. A primeira empreita das garotas foi auxiliar o coletivo Velga – os parceiros do FDE na cidade - a organizar o Grito do Rock. É um trabalho pioneiro na ilha, já que a maior parte das produtoras está interessada nos nomes de sucesso da música e artes, e a Delirium – nome da produtora – quer o underground, alternativo e marginal.

Um dos espaços  do Odeon / Foto: Ana Mesquita
De São Luís voltei pra São Paulo, que me recepcionou com garoa, céu nublado e 15 graus. A sorte é que fiquei ainda pelo menos umas duas semanas sem internet em casa, o que me fez voltar aos poucos pra rotina. Já com a internet começo a adicionar os novos amigos, conversar com as pessoas, ver o que está acontecendo por lá, e a saudade aperta.E numa conversar com Hérika, minha super amiga que gentilmente me recepcionou em sua casa em São Luís, digo:

- Amiga, é possível sentir banzo de um lugar que não te pertence?

- De uma certa forma Ana, você pertence a esses lugares.

P.S: O título faz referência a uma frase dita pra Macarena, uma chilena arretada que mora em São Luís há 16 anos. O “atoíce” é ficar à toa, sem fazer nada como nós naquele dia, bebendo cerveja num buteco. Ludovicense porque é assim chamado quem nasceu em São Luís.

Vamos aos links desse povo todo!

Coletivo Gororoba

Afrodites

Delirium Produtora

Criolina

Rosa Reis

Pé de Ginja

Stalingrado

Nova Bossa

Ana Mesquita é colaboradora do Pastilhas Coloridas e jornalista freelancer amante de cinema. Twitter: @anamesquitafoto
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