Rios, pontes e overdrives - Olhos de Julio Cesar


Aqui nesta coluna que inicio hoje, apropriadamente batizada de 'Rios, pontes e overdrives', de um modo geral, 'Rios' são minhas opiniões, 'Pontes' os links relevantes e 'Overdrives' tudo aquilo que julgo extrapolar os limites.

Aproveitando esta curta apresentação quero agradecer imensamente ao Lúcio Maia da grande Nação Zumbi pela permissão do uso do nome. Valeu Lucio Maia, valeu monstros. E ao Pastilhas Coloridas pela oportunidade de publicar meus textos aqui. Valeu Vinicius!

Sem mais delongas, sejam bem-vindos, fiquem à vontade pra interagir e espero que curtam.

Rios: Olhos de Julio Cesar

Julio Cesar tem dois lindos olhos azuis. Daquele azul que nem piscina tem. Como se ainda fosse um bebê, com brilho nos olhos, vivacidade e curiosidade no olhar. Olhos azuis luminosos. Seu pai se orgulhava de tão caprichosa criação.

- Merece até ter o meu nome! Nome de imperador! - bradava com o braço direito erguido, palma da mão e dedos para cima. Poderoso.

Seu pai sempre lhe ensinara o que era a beleza. O que ele poderia achar bonito ou não. "A beleza está no que seus belos olhos podem ver, o resto é conversa." "Se for se casar, que seja com uma mulher que é ou já foi modelo, cabelos lisos, olhos claros. Temos que manter nossa tradição de família bonita. O resto é conversa."

Julio Cesar cresceu ouvindo seu pai e não gostava de conversa, gostava de olhar, mas mais ainda, de ser olhado. Como é bom ser elogiado pelos lindos olhos. Como é mais lindo o que os lindos olhos podem olhar. Como a beleza é linda! Ela não conversa, ela só mostra, é estática na pele de poucas e abençoadas pessoas. "Deus sabe quem premia" repetia Julio Cesar pai para manter a auto-estima de Julio Cesar filho. Desde cedo freqüentava os melhores salões de beleza, academia e dermatologistas. Tinha corpo, cabelo, pele e olhos impecáveis, além de um sonho: aparecer numa propaganda de perfume importado. De preferência em uma foto pela possibilidade de trato.

Julio Cesar era só olhos. Gostava tanto de admirar a beleza que nunca se atentara sobre os riscos que isso poderia trazer. Certa vez, estava em uma loja de roupas, parado em frente a três manequins, escolhendo as combinações mais perfeitas de roupas. Os manequins estavam em posições diferentes, para que pudesse se imaginar em situações diferentes com aquelas roupas. Justamente o que tinha braços esticados para frente caiu em direção a Julio Cesar que, sem reação, arregalou os olhos recebendo um fortíssimo golpe de rígidos e pesados dedos, em seus globos azuis.

O pânico foi generalizado. Julio Cesar gritava que não conseguia abrir os olhos e as pessoas, atônitas, olhavam para ele que ainda tinha os olhos arregalados, mas não enxergava. Estava tudo escuro. Cadê a beleza? Foi chamado o serviço de ambulância que o levou ao hospital e lá veio a notícia: Julio Cesar estava cego. Seu pai, de tão desesperado, conseguia resumir em alto volume sua opinião: "meu filho não serve para mais nada", repetia desesperado. Sua mãe usava aquele poder que as mulheres têm, especialmente as mães, de tirar controle sabe-se lá de onde, para se manter firme, acudir o pai, estimular o filho, cuidar das burocracias no hospital, conversar com os médicos, imaginar como será a nova vida em casa e ainda prover o jantar naquele fatídico dia, afinal, estava sendo um dia pesado para Julio Cesar pai e Julio Cesar filho.

O jantar naquela noite foi em clima de velório, menos para a mãe que tentava mostrar aos dois homens que nem tudo estava perdido, mas eles não acreditavam. Depois de servir a janta, tirar a mesa e lavar a louça, ela pôde ir ao banheiro soltar seu pranto sozinha, pois os dois homens já estavam deitados, juntos, dado o dia pesado que tiveram.

Com o passar do tempo, Julio Cesar pai foi se acostumando com a situação e já ignorava o filho que não lhe orgulhava tanto mais como antes, por não ter seus melhores atributos pessoais. Perdera sua maior criação, os olhos de Julio Cesar filho. Julio Cesar filho, por sua vez, estava se adaptando à nova realidade e, se não podia enxergar a beleza, podia se lembrar do que já tinha visto e guardava em memória como lindo. Seu maior problema é que as belas mulheres modelos que o admiravam, já não olhavam mais para ele, sob a justificativa de que ele não correspondia.

Sua mãe já havia adaptado toda a casa e a rotina ao fato novo, via sua vida correr normalmente com até mais amor pelo filho. Ela o estimulava a conhecer novas pessoas e esquecer as mulheres que já não o olhavam mais. Numa dessas ações, ela o apresentou ao filho de uma antiga amiga. A primeira conversa entre eles foi divertida e mostrou a Julio Cesar um outro mundo, onde ele não precisava olhar para ver a beleza. Aquele cara tinha algo de diferente na fala, na risada, nas palavras. Era um amigo.

Tempos depois, na sala de espera da psicóloga que contratara para se reequilibrar emocionalmente, contou sua história a uma moça que lá estava esperando atendimento para tratar os danos psicológicos causados pelo preconceito e discriminação que sofrera durante a vida, desde criança. Devido ao atraso no atendimento, passaram trinta minutos conversando até que resolveram ir a algum outro lugar continuar o agradável papo e esquecer a psicóloga. A conversa foi tão boa que perderam a hora, mas já marcaram outro encontro. A maior vontade de Julio Cesar era ligar para o filho da amiga da sua mãe e contar o que ocorrera. "Que estranho, só o encontrei uma vez, nem o vi, mas sinto que a presença dele aqui agora me faria bem. Só para conversar. É diferente dos amigos que tive até hoje."

Era, de fato, outra realidade para Julio Cesar. Uma realidade onde não é necessário ter olhos, mas apenas ser sincero, especialmente com os próprios sentimentos. Com um amigo e um amor, Julio Cesar estava encantado com a vida. "Mãe, obrigado por tudo o que está fazendo por mim", repetia diariamente deixando sua mãe emocionada e sem saber bem o que responder por nunca ter ouvido isso. Seu pai continuava achando que o melhor de Julio Cesar era os olhos, que agora não estão mais lá, mas, mesmo assim, gabava-se de todo investimento financeiro feito em casa para as adaptações necessárias. "Gastei um dinheirão com você filho", dizia imponente, deixando o menino sem graça.

Depois de alguns encontros, Julio Cesar decidiu levar seu amor para a família conhecer. Titubeante no início, mas encantada pelos sentimentos claros de Julio Cesar, ela aceitou. A mãe de Julio Cesar preparou um belo almoço, que o pai gabava-se de ter pago, e lá foram eles. Tudo correu da melhor maneira possível com a mãe fazendo uma amizade bonita e o pai quieto. "Sua mãe é um amor, mas seu pai é muito quieto"; "É o jeito dele", disfarçou Julio Cesar. Depois, seu pai veio ter uma "conversa entre homens, de pai para filho".

- Filhão, você sabe que eu te amo mesmo assim, né? Nós tínhamos um trato, você se lembra? Que casaria com uma modelo, cabelos lisos, pele branquinha, olhos claros, lembra disso filhão?
- Pai, eu nem a vejo, eu só gosto dela e estou feliz, não basta?
- Mas filhão, tínhamos um acordo, você é homem, tem que manter e honrar a palavra.
- Eu estou pai, estou dizendo que estou feliz e isso é verdade. Não quer me ver feliz?
- Quero filho, claro que quero, mas sei que seria mais feliz se mantivesse nosso acordo.
- Não imagino felicidade maior do que a que estou sentindo pai, não existe.

Percebendo que não poderia mais controlar seu filho, o pai foi se deitar e pensar no que pode ter feito errado, apesar de não acreditar nisso. Desabafou com a mãe, que parou tudo o que fazia para lhe ouvir e depois voltou às suas tarefas ouvindo reclamações de que não estava ao lado dele neste momento difícil.

Julio Cesar cresceu, conseguiu um bom emprego, casou-se, fez viagens de lua de mel e aprendeu a ver a vida sem os olhos. Uma nova vida. Julio Cesar acordou quando seus olhos se fecharam.

Pontes: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u947.shtml

Overdrives: a beleza é bela, desde que realmente bonita. Seus olhos não vêem tudo o que você pode ver.

Fernando Rios é administrador de empresa, músico e agora o mais novo colaborador do Pastilhas Coloridas
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