Pastilhas de um Carapuceiro - Tratado geral dos chatos

Por Xico Sá

Sem nenhuma pretensão de atualizar a brochura “Tratado Geral dos Chatos”, que o homem de teatro - sim, existem, habemus homens de teatro! - Guilherme Figueiredo pôs no mundo há mais de meio século, cá estamos com uma nova lista destas criaturas capazes de nos subtrair a paciência e nos deixar tão inquietos quanto as vítimas do Pediculus púbis, como são conhecidos cientificamente os insetos homônimos que atacam as partes mais baixas e indefesas de um cristão de fé.

Bons e inocentes tempos aqueles em que os chatos se resumiam aos tipos agrícolas, como o chato-pra-chuchu, ou às criaturas crentes na meteorologia, como os chatos-de-galocha, que já saíam de casa prevenidos contra qualquer enchente, vento ou maré. Haviam ainda os menos ofensivos, como os da espécime aforismática _sempre com uma filosofia de pára-choque na ponta da língua para importunar a vida alheia.

O certo é que eles se multiplicaram como os invertebrados homônimos e hoje dominam o país, os lares, as repartições, os logradouros públicos, as salas de espera... Estão em todas as partes. Existem os chatos-24 horas, estes vampiros da paciência alheia, como diria o bruxo do Cosme Velho - só para citar outro tipo fenomenal de chato, que é aquele que sempre inicia uma conversa com a inseparável locução “como diria...”

Enfim, só nos resta ser mais chatos ainda, o que tenho buscado nestas linhas, afinal de contas ainda não nasceu o ser humano capaz de chatear um chato sem que portasse a mesma peçonha. Como perdemos, nesses tempos corretos, o gosto pelo assassínio e maltratos do gênero, sobra a este cabeça-chata que vos impacienta mapear os maçantes mais visíveis e contemporâneos. Ei-los:

Mega-super-ultra-hype - O chato mais veloz do Oeste. Trata-se da criatura atualizadérrima nas últimas tendências e apostas do mundinho dos modernos da noite e da mundanidade em geral. Sabe a nova gíria dos clubes de Londres e já baixou no computador a última faixa do DJ paquistanês pós-electro-cool-de-cu-é-rola que será a sensação no inverno novaiorquino. Na hora de falar, apresenta-se como um Guimarães Rosa clubber, ninguém compreende um só vocábulo.

Fêmea sitcom - Aquele tipo metropolitano metido a chique que acha que a vida é um seriado americano, um Sex and City sem fim, século seculorum. Nos salões, principalmente nas bocas-livres, está sempre com um prosseco à mão. Adora vernissages.

Chatos de época - Rabugentos, inconsoláveis, sempre a resmungar pelo borogodó que se foi. Não é uma questão de idade, ataca também raparigas em flor, como as gazelas que fazem um tipo “virgens suicidas” e ouvem Renato Russo e Smiths como se fossem mademoiselles do século XIX.

Garçonete-cabeça - Aqui encarno um rápido chato de época para lembrar o tempo em que garçom vestia preto e branco, com gravatinha borboleta, o chopp chegava gelado, ele sabia o resultado do futebol e ainda nos servia de ombro para uma dor amorosa de ponta. Hoje, nos bares de moda, as garçonetes são lindas, descoladas, podem passar a noite a discorrer sobre cinema coreano, mas o serviço que é bom... nécaras, como diz o meu amigo Sabião Bestunes, o monstro de Sabará y alhures.

Mario de Andrades digitais - Pessoas que escrevem e-mails enormes, como as famosas cartas do modernista paulistano. Esse homem matou muitos pobres e desnutridos carteiros de tanto fazê-los gastar sola de sapato, pois se correspondia com o país inteiro... Embora desse a impressão a cada interlocutor que aquela troca de cartas embutia uma linda e única afinidade eletiva. Todos os anos vem à tona um novo carregamento de missivas do gênero. Escreveu para tocadores de coco do Nordeste, índios, mitos amazônicos, gorilas...

Xico Sá, escritor e jornalista, colunista da Folha, autor de “Chabadabadá – As Aventuras do Macho Perdido e da Fêmea que se Acha” e mais 10 livros. Na TV, participa do programa “Saia Justa” no canal GNT. E agora é parceiro nosso aqui pelas bandas do Pastilhas. (Texto extraído do blog O carapuceiro)
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