Pastilhas de um Carapuceiro - A vida é breve, a D.R. é longa

Gilles Delleuze
Por Xico Sá

“Ai naquele maior barraco, ele, rapaz acadêmico, vem com uma citação de Delleuze (o Gilles, filósofo francês) pra cima de mim, vê se pode uma coisa dessas?!!”
Pior é que pode.

Sim, como o desabafo da amiga N. não nos deixa mentir, intelectual (ou metido a) bota Delleuze & Sartre até no meio de uma D.R., a sigla como é conhecida hoje a mitológica Discussão de Relação , mesmo a mais breve.

Embora seja escritora de mancheia e conhecedora do mundo afrancesado, N. não se conteve diante do mancebo-dos-rizomas. Deu download na brava cabocla Iracema que mora na sua alma cearense e sapecou: “Diabeisso?!”, corruptela alencarina de “que diabo é isso, miserável?!”

Ela não concebia que naquelas cinzas das horas, a casa caindo, alguma criatura esquecesse de mirar o próprio teto e convocasse Delleuze para resolver o drama de alcova. Como se a vida a dois fosse uma tese, como se desconsiderasse o conhecimento do belo inferno dos lares.

D.R. com intelectual ou artista envolvido é assim mesmo. Não tem jeito. D´onde classificamos alguns embates com os seus respectivos padrinhos, além do Delleuze já citado da cumeeira desse texto:

D.R. Kurosawa - Outro noite adiei a saideira por horas, na Mercearia San Piedro, reparando num embate de casal que imitava a arte deste cineasta. Uma discussão lenta, imagens lindas, arrozais sob montanhas, silêncios que falam coisas, uma peleja quase em ideogramas.

D.R. MPB - Indecifrável e incompreensível como o “zum de besouro ímã” do verso do Djavan. Muita onomatopéia e nem uma idéia os males da D.R. são. É uma D.R. assim “nem menina nem mulher, lilás”, como no enigma de uma canción de Zé Ramalho.

D.R. Erística - Como na corrente homônima herdada dos gregos, a arte de triunfar no barraco oral mesmo sem ter razão.

D.R. punk-rock _ Três acordes e vai cada um pro seu lado, dormir na casa da mãe, de um(a) amigo (a), hotel, flat, amante, homeless...

D.R. Paulo Coelho - Depois de “Onze minutos” de sexo, o barraco sempre começa com uma parábola bíblica ou uma lenda árabe.

D.R. Bartleby - “Prefiro não discutir”, diz uma das partes, repetindo o mantra do escriturário do livro homônimo de Melville.

D.R. free-style - É a discussão rimada, estilo rap, passionais MC´s: “Assim você me afunda/ com esse pé-na-bunda/ com essa insensatez.../ meu barquinho já naufraga/bossa nova é uma praga/veja só que a vida fez!”

D.R. brechtiana - A arte de enfrentar o público, seja num botequim seja numa festa, com o distanciamento do personagem, como se dissessem do palco, a cada golpe, “não é nada disso que vocês estão pensando, controlem-se”.

D.R. Abaporu ou D.R. arte moderna - Típica discussão sem pé nem cabeça, que para nenhum dos dois interessa.

D.R. metalingüística - A D.R. da D.R., tipo roteiro de Kauffman (“Adaptação”, o filme), exercício das cabeças requentadas ou das mentes ressentidas.

E por ai vai...

Xico Sá, escritor e jornalista, colunista da Folha, autor de “Chabadabadá – As Aventuras do Macho Perdido e da Fêmea que se Acha” e mais 10 livros. Na TV, participa do programa “Saia Justa” no canal GNT. E agora é parceiro nosso aqui pelas bandas do Pastilhas. (Texto extraído do blog O carapuceiro)
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