"Já passei um inverno aqui, com Sylvie, nas mesmas condições. Só que a viagem de vinda foi bem pior do que esta. Pra começar, dois meses depois de prisão no forte de Peshawar. Fomos pegos na fronteira.
Naquele inverno, tive um princípio de apendicite. Estava quase me entregando para os Russos. Não tomei nenhum analgésico para poder avaliar a minha dor, mas me entupi de antibiótico e passou.
Havia lobos. Era proibido sair pra mijar à noite por causa deles. A gente enxergava os rastros na neve de manhã. Em volta das casas no final do inverno, não havia mais nada pra comer. Algumas folhas de árvore serviam de espinafre.
Traziam pão pra gente todo o dia. Quanto mais tempo passava, pior o pão ficava. No final havia mais terra nele que pão. Um dia desajeitados, dissemos para o padeiro que não queríamos mais o pão, que íamos joga-lo fora. E ele meio sem graça pediu pra gente devolver pra ele.
À tarde, ficamos sabendo que havia um mês que ninguém mais nos arredores comia pão. As famílias davam tudo que tinham pra que Sylvie e eu continuássemos comendo pão.
E é claro que quando você vive isso uma vez, tem que voltar e começar de novo.
Pelas pessoas."
O trecho acima, extraído da excelente série de foto-hq que estou lendo, "O Fotógrafo", me faz cada vez mais acreditar que a gênese da solidariedade de fato está nos lugares mais inóspitos e miseráveis do mundo. Porque são neles que o ser humano despido de ego e vaidade assume suas mais nobres virtudes.