Alex, Jack, Kubrick e uma fila de 80 mil pessoas


Por Elsa Villon | Cinema |

Quem passava em frente à Avenida Europa e olhava as longas filas, já sabia: eram pessoas extasiadas pela exposição “Stanley Kubrick” no MIS (Museu da Imagem e do Som), em São Paulo. Dando voltas no quarteirão, a mostra teve seus horários de visitação estendidos na última semana – até às 3 horas da madrugada no último sábado.

Tudo isso para garantir que o público conseguisse circular pelas salas temáticas com objetos dos filmes e acervo pessoal do diretor. Desde roteiros e cartas pessoais, até o monolito de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, passando pela máquina de escrever de Jack Torrance e o figurino original de Alex DeLarge em “Laranja Mecânica”.

Não à toa, 80 mil pessoas passaram pelos 16 ambientes entre 11 de outubro de 2013 e 12 de janeiro de 2014. Realizado em parceria com a Mostra Internacional de Cinema, reuniu também áudios, entrevistas, fotos, documentos e pôsteres que narram a trajetória cinematográfica do diretor nova iorquino.

Minha sala favorita foi a de “O Iluminado”. Talvez pela iluminação, talvez pela sonorização, ou ainda, por meu extenso trabalho sobre o filme para a disciplina de Montagem no CAV. Não viu o filme? Não foi à mostra? Não sabe o que é montagem? Então confira abaixo uma análise digna de “all work and no play makes Jack a dull boy”.

Transitando entre o gênero suspense/terror, “O Iluminado” é um filme que faz o espectador prender a respiração apenas com o silêncio. Baseado na obra literária de Stephen King, o longa-metragem de Kubrick provoca de maneira única a sensação de isolamento e frio constante. Se o gênero costuma evidenciar cenas de violência, de suspense, de sangue, Kubrick segue uma linha oposta e deixa para a trilha sonora o papel de pontuar as cenas de terror e suspense.

As primeiras cenas já situam o espectador quanto à locação: montanhas afastadas da civilização, além de muitas árvores indicando florestas e imensos lagos. Um grande plano geral que evidencia a imensidão da paisagem e o travelling indica o movimento de aproximação até a próxima cena. Com efeito de transição encobrindo a primeira cena, surge um plano aéreo de uma estrada com um carro, sugerindo que o primeiro plano é o destino de quem está dirigindo: o Overlook Hotel.

Muito bem amarrado entre trilha sonora, trilha musical e sequência de planos em locações excepcionais, além de ótimos enquadramentos, a obra utiliza a construção psicológica dos personagens como elementos de horror, sem o uso de constantes cenas de suspense ou terror recorrentes ao gênero. A trilha musical amplifica a sensação de solidão e de reclusão que o cenário sugere, com ar sombrio e de isolamento.


Constantes variações de sons diegéticos e não-diegéticos são cruciais ao roteiro para pontuar as cenas em que já esperamos algo inusitado. Passos, o silêncio, o som do triciclo no piso ou no tapete: a ambientação sonora é um recurso usado com primor nas sequências de ação do filme e cria uma métrica de pergunta e resposta entre os diálogos dos personagens e a trilha utilizada.

Quanto aos enquadramentos, há planos mais fechados e zoom para indicar medo ou loucura. Evidências disso são as feições de Jack quando seu estado psicológico já foi afetado pelas recorrentes alucinações. Os planos fechados e zoom em Danny também são utilizados para contextualizar suas visões, como a sequência de seu passeio de triciclo em que visualiza as gêmeas no final do corredor.

A divisão com letterings, como episódios ou capítulos dentro do longa, direciona as elipses temporais durante a estadia no hotel. Em relação ao tempo, se temos o passar de um mês indicado em apenas um segundo, o último dia se estende pois é o desfecho da história. Esse recurso é enfatizado novamente com o lettering, que ao invés do dia, indica o horário em que as sequências se passam.


As cores buscam a claridade, criando tensão pelo contraste do sangue, nas cenas em que ele surge. O simbolismo do vermelho, dentro das cenas, também remete ao sangue, por contrastar com a atmosfera clara e ampla, mas não menos sombria por essa razão. Os planos abertos que acompanham os personagens mostram amplitude do cenário. No desenvolvimento da trama, há variação de cores, puxadas mais para o azul para remeter à neve.

O terror também se dá pelo alongamento das cenas, cortes lentos e ênfase no percurso da personagem, como o trajeto de Wendy (Shelley Duvall) ao descobrir que seu marido, Jack Torrance (Jack Nicholson), escreve repetidamente a frase “Muito trabalho e nenhuma diversão faz de Jack um bobão”. A temporalidade das ações, tanto de Wendy, quanto de Jack, é prolongada em relação ao ritmo do filme, que até então pontuava trechos dos dias e a passagem de um mês no local.

O paralelismo também é recorrente entre as ações dos personagens e enfatiza o clima de suspense do filme, como no momento da perseguição do machado de Jack e da fuga de Wendy, trancada no banheiro. De um lado, temos ação e movimento e do outro, o silêncio e o medo. O contraste entre os dois planos também um recurso que funciona muito bem para provocar tensão. Kubrick sabiamente utiliza isso para que o público imagine o desenrolar da ação.


Um claro exemplo disso é o final, onde há 4 ações ocorrendo simultaneamente: Wendy esperando Jack se afastar do banheiro após esfaqueá-lo; Jack procurando Danny ao longo do hotel; Danny se escondendo e o cozinheiro - chefe procurando por todos. O tempo se comprime para dar vez ao paralelismo das diversas ações em andamento em locais diferentes no mesmo hotel.

Um recurso interessante utilizado são as cenas rápidas que surgem para evidenciar as visões de Danny. São segundos em que temos rios de sangue no corredor, ou um olhar rápido em que vê as gêmeas mortas. Há ainda o momento em que o cozinheiro - chefe se comunica mentalmente com Danny, segundos do áudio em que a fala se dá sem o movimentar da boca e a câmera dá um zoom no rosto do garoto e seu interlocutor. Esse recurso também é utilizado no final do filme com Wendy, ao se deparar com a visão no corredor, e Jack, no momento em que surge congelado.

A câmera é posicionada em vários momentos como uma terceira pessoa. Em outros, no entanto, é subjetiva para indicar o olhar do personagem, suas sensações, sua percepção dos acontecimentos. No final, temos o desfecho inusitado, que permite ao espectador tirar suas conclusões dos acontecimentos com base no que desenvolveu ao longo do filme.


O que é interessante no filme é o conhecimento do terror logo no início, com as visões de Danny, sem saber ao certo como isso se dará. A linearidade dos acontecimentos é feita de maneira a deixar o clímax para as últimas cenas. Os cortes rápidos contrastam com algumas transições mais lentas, utilizadas no começo e indicar uma movimentação maior dos personagens.

A minha sensação, como expectadora, é que a sensação de um filme que se contrai temporalmente no final, mas se expande em termos de ritmo, oposição ao início, pontuado por maiores elipses de tempo com menor ocorrência de fatos. O hotel, antes amplo e iluminado, ganha tons mais fóbicos e opressores, mal iluminados e perde a amplitude no começo.

Pensar e sentir 3 personagens distintos é realmente uma tarefa bem cumprida no filme: temos o medo de Danny, o terror de Wendy e a loucura de Jack dentro de um mesmo contexto cênico que nos ajudam a ter dimensão de uma situação aterrorizante de um isolamento em um ambiente assombrado por um crime tão aterrador como o do antigo zelador. Principalmente para uma criança iluminada, sensível a tudo isso.

Principalmente para uma criança iluminada, sensível a tudo isso.

Data de lançamento: 23 de maio de 1980 (Estados Unidos)
Direção: Stanley Kubrick
Duração: 146 minutos
Música composta por: Wendy Carlos, Rachel Elkind-Tourre

Elsa Villon é colaboradora do Pastilhas Coloridas, jornalista e fotógrafa viciada em café, cinéfila, adora Beatles e cheiro de pão saindo do forno. Twitter: @elsavillon
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