Rios, pontes e overdrives - A decepção de Charles


Rios: A Decepção de Charles.

Charles tomou uma decisão. Daquelas decisões irrevogáveis. Decidiu e estava decidido. Foi conversar com Deus, num domingo, na hora do aperitivo, antes do almoço, quando o sono ainda não chegou e as palavras ainda fluem melhor que as mastigadas por vir. "Deus, cansei de ficar aqui, quero voltar, ver como a evolução aconteceu". Deus, dentro de sua despreocupação no dia dito de descanso, respondeu sem grande crença: "mas Charles...". Deus não acreditava naquele pedido. "Você já foi, fez o que tinha de fazer e agora seu trabalho é aqui, não há o que você fazer lá." "Deus, eu quero. Por favor...".


Deus ficou de pensar em outra hora, pois domingo é o dia do descanso e o pão e o vinho estavam servidos.

Na segunda-feira Deus levantou-se, viu aquela pilha de pedidos sobre sua mesa, deu uma lida rápida em alguns, o suficiente para se lembrar do pedido de Charles: "...ver como a evolução aconteceu". Deus começava a ficar simpático à idéia. Mas o Charles? Não haveria outro? Talvez pela ingenuidade da declaração sobre a evolução pudesse ser interessante... são argumentos para que sim, argumentos para que não... 'o duro de ser Deus é que não tenho a quem consultar... no fim fica tudo nas minhas costas' lamentava-se consigo, sem ter a quem se lamentar. Voltou à pilha de pedidos e foi lendo um a um, decidindo um a um, sempre se lembrando da frase inocente de Charles 'ver como a evolução aconteceu'. Deus centrou-se, meditou, pensou, passou a noite em claro pensando em Charles e convenceu-se de que não era uma decisão para tomar sozinho.

Convocou anjos, santos e lançou a idéia, espantando-se com a unanimidade e com os argumentos.

- Se ele quer...

- Deixe, por que não?

- O que você tem a perder?

- Pai... você e sua dificuldade de decidir! Deixe-o ir de uma vez, se é o que ele quer!

- Vai, que se não der certo é só trazer de volta!

- Demorou Pai! A gente da conta aqui, deixe o cara ir lá!

O confuso Deus estava mais decidido agora: ele vai. E o convocou para uma conversa sincera.

- Charlie, você tem certeza que quer ir?

- Sim Pai, quero ir.

- Não quer dar uma lida nos pedidos que recebo para ter uma idéia do que vai encontrar?

- Não Pai, quero ir, quero pisar na terra, ver ao vivo, sentir.

- Bom Charlie, se assim quer, assim será.

E os olhos de Charles se apagaram. Uma sensação gostosa se deu em seu corpo, até que uma luz muito forte e um ardido no nariz aconteceram, assim, sem mais nem menos. Charles abriu os olhos pela primeira vez e viu uma enfermeira dizer: "que lindo, é menino!" Iniciou ali sua primeira choradeira.

A segunda choradeira deu-se pela fome, pois sua mãe o havia abandonado no hospital, fugindo pela madrugada. Quem iria amamentá-lo? Um alvoroço no hospital em torno de Charles até que algum tempo depois uma outra mãe se dispôs. Mas Charles tinha que sair do hospital "para abrir vaga pro próximo" como repetia o diretor que aparecia na hora do almoço, "aqui tem o melhor refeitório, de todos os hospitais que trabalho", orgulhava-se. Depois do almoço, sumia de novo.

Charles foi para um orfanato onde haviam muitas crianças, abandonadas pelos pais ou mesmo retiradas por maus tratos. O orfanato vivia da ajuda de algumas pessoas que faziam doações ou ajudavam trabalhando e do apoio do governo que repassava dinheiro a uma pessoa colocada lá como responsável por tudo e que aparecia menos que o diretor do hospital, pois o refeitório não era lá tão bom. De vez em quando ele aparecia para ver se estava tudo bem, o que sempre acontecia, pois tocado por poucas pessoas de bem, regido por uma rotina. Todos os dias eram exatamente iguais.

Foi neste contexto que Charles cresceu, vendo toda a discriminação, preconceito, maus tratos entre pessoas, egoísmo, violência dos mais variados tipos, racismo, machismo, julgamentos baseados em posses materiais, maus tratos a animais, poluição e destruição do planeta em nome do lucro financeiro e do prazer pessoal, exploração de pessoas mesmo que idosas ou crianças, pessoas passando fome enquanto muita comida é jogada no lixo e tantas outras coisas do homem evoluído e com capacidade de raciocinar, que um dia, mesmo ainda criança, teve um sonho, onde escrevia uma carta para entregar a um senhor solitário, desolado e cansado, que estava sentado em uma praça com poucas árvores, algumas plantas secas, muito lixo pelo chão e alguns mendigos com seus cães, dormindo onde dava para dormir. Assim foi a carta:

Carta aberta de uma criança para Deus:

"Querido Deus, obrigado por realizar meu sonho de vir à Terra. Não pude conhecer papai nem mamãe, não sei bem por quê. Soube que existem coisas lindas, natureza, seres vivos; há vegetais e animais, que conseguiram adaptar-se à uma natureza, onde, além de lutarem pelo seu alimento, precisam lutar contra predadores que matam por diversão, também não sei bem por quê.

Eles aprenderam a se criar e sobreviver em uma selva onde o que menos tem, é selva. Não há plantas, não há água. Há equipamentos e aparelhos de locomoção que matam e destroem. Eles evoluíram Deus. Vi também florestas destruídas que precisam se reinventar de alguma forma para que o planeta não acabe por inteiro. Deus, esse é o caminho que a única espécie que tinha tudo o que precisava para evoluir, está seguindo. Isso é mais um por que, que não entendi. Eu fiquei muito triste quando vi que todo seu trabalho para criar o ser humano com toda sua capacidade, aqui não funciona muito bem. Parece que se esqueceu de dar um manual aos humanos. E precisa dar mais paciência para eles também.

Mas tem as pessoas boas, elas cuidam de crianças com o cuidado de uma mãe. Não são levadas a sério pelos outros, mas estão aqui para ajudar. Essas pessoas acreditam que tudo pode se transformar. Agora elas não estão felizes com o mundo, mas quem sabe, um dia voltam a se divertir com a natureza, sem mesmo precisar de palavras ou cores, somente rir de tudo, como crianças. Se divertir consigo mesmo, com semelhantes, com pouco. Acho que entendi um por que, Deus: faltou aprenderem a viver com pouco e também com suas muitas possibilidades. Como criança, vou continuar me divertindo em silêncio. Assinado: Charlie"

Algum tempo depois desse sonho, Charles teve uma infecção e voltou para o lado de Deus. Agradeceu a oportunidade, foi para seus afazeres e não quis mais saber de evolução.

Pontes: http://youtu.be/3OmQDzIi3v0

Overdrives: ”O homem, guiado pelo amor-próprio, corrompe-se; passa a ter o desejo de ser superior aos outros, aliena-se”. Jean-Jacques Rousseau

Fernando Rios Andrade gosta de fazer muitas coisas, mas quer mesmo é passar a vida escrevendo! riosandrade@hotmail.com
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